sexta-feira, 4 de março de 2011

A RECEITA

A Receita
(NUMA PEQUENA MESA UMA MULHER ESTÁ SENTADA.)

- Todos os ingredientes estavam lá. Foi como todos os dias... A noite era mais constante... Ele chegava... E eu ia correndo feito um cachorrinho! Ele tirava os sapatos... Eu como uma gueixa os recolhia... Ele... Tirava a camisa. Era sempre da mesma cor: amarela. Aquele homem cheirava a ouro. Pegava a SUA camisa e a dobrava... Lentamente... A dobrava. A calça ele não tirava... Mas sim, o cinto. Antes dele despisse do cinto, eu já preparava os ingredientes. Na cozinha passava maior parte. Sobre a quantidade de filhos... Muitos! Todos belos... Como o pai. Todos homens, feito o pai. Todos ali... Parecia um batalhão... Prontos! Só lhes faltavam os coturnos e os fuzis. Na cozinha pus uma televisão pequena. Preta e branca. Acho que era a única TV não colorida que existia, pois não vira nenhuma em outras casas. Antes da cozinha. Tinha a feira, o mercado... Livre... o mercado livre... Com a sacola na mão... Iá as verduras. Quase não frutas, pois ele falava que fruta era para rico. Só verduras e verduras. Aprendi a conhecer as várias especialidades de legumes. Tinha: os das cascas porosas, ásperas, lisas, finas, duras, fáceis, difíceis... Difícil... À noite eram mais constantes.
Os grãos. Nunca os mesmos na semana. Conhecera todos. Na segunda o feijão era macaça, na terça, mulatinho, na quarta o verde, quinta vage, na sexta fava, no sábado feijão branco e no domingo... Preto... A noite era mais constante...
Carne... Carne... Carne... As carnes!
Carne de primeira para segunda, carne de segunda para terça, carne com osso na quarta, costela na quinta, bife na sexta, na sábado bisteca, no domingo era dia de feijoada... À noite eram mais constantes.
Os ingredientes... O básico para dar o tempero, o gosto: sal, alho e coentro com cebolinho. Tudo era preparado com sal, alho e coentro com cebolinho. A receita para tudo era: sal, alho e coentro com cebolinho. A noite era mais constante...
Ficara especialista em sal, alho e coentro com cebolinho e... Facas... Sabia como manejá-las, amolá-las... Limpá-las... Para cada legume uma faca, para cada carne outra, uma em cada. Aprendera a cortar os vários tipos de carne. Na segunda a carne de primeira era cortada por uma faca bem fina, na terça a carne de segunda era uma faca peixeira de cabo longo, na quarta o cutelo para a carne com osso, na quinta o cutelo se repetia pois a costela mesmo querendo a peixeira a cortava com o cutelo, na sexta o bife por não ser tão macio... A faca era de ponta bem afiada Só a ponta, no sábado tinha a bisteca, que não tinha muito serviço, pois só tirava o pouco da gordura da extremidade, no domingo... As facas quase todas eram usadas! Vários tipos de carnes requerem vários tipos de facas... Era um requinte... De crueldade... A noite era mais constante...
E quando o cinto era despido... Sentia... A segunda com carne na primeira, na terça a segunda, a quarta os ossos doíam, na quinta o cutelo nas costelas, na sexta o bife era amaciado, no sábado a bisteca gordurosa sangrava e no domingo todas as carnes...
Sangravam... Doíam... A alma. A noite era mais constante... E minhas mãos cheirando a alho coentro e cebolinho. A Pele, o gosto era... De sal, alho e cebolinho... Impregnado... Sedimento de cozinha... Era... Eu... Sedimento de cozinha... Pele áspera, dedos lisos, narinas finas, unhas duras, fáceis, difíceis... Difícil... À noite eram mais constantes.
Os grãos... Danação! Grãos, grãos, grãos, grãos, grãos, grãos, grãos, grãos , feijão, feijão,feijão, feijão, feijão, feijão, feijão, legumes, legumes, legumes, legumes, legumes, legumes, legumes, carne, carne, carne, carne, carne,carne, carnes, faca, faca, faca, faca , faca, faca, facas, sal,sal, sal, sal, sal, sal, sal, alho, alho, alho, alho, alho, alho, alho, cebolinha, cebolinha, cebolinha, cebolinha, cebolinha, cebolinha, cebolinha... Sedimento de cozinha... Cinto, noite... Os ingredientes... Tempero,
Essa era a receita. Aprendera na cozinha a ter um olfato privilegiado. Conseguira distinguir cada odor. Se o legume estava podre, se a carne estava estragada, se o feijão estava mofado, se o alho e o cebolinho não prestavam... Se o perfume era doce... E quando ele tira a camisa e a pego... O cheiro... Diferente... Bem diferente... Era doce como erva... A erva... E o cinto... A noite era mais constante.
Aprendera nova receita... Depois daquele aroma... E do cinto... Aprendi novos ingredientes. A misturar outras ervas... Acrescidas ao sal, alho e coentro com cebolinho. E as noites foram parando... Deixando de... Serem constantes ...
(OUVESSE BARULHO DE UMA SIRENE DE POLICIA)


Por Samuel Santos.